sábado, 8 de novembro de 2008

em trânsito

Já há 10 anos tive meu primeiro contato com Hundolândia, chegou pelas bandas de cá um de seus habitantes.
Um rapaz muito bonito e interessante, cuja sensibilidade e atenção o destacava. Nunca tinha conhecido ninguém assim antes.
Tive o privilégio de conseguir me aproximar um pouco dele e de vê-lo volta e meia. Às vezes com mais e às vezes com menos intensidade. Tinha um que outro costume diferente, como dormir com um cachorro na cama, se estressar em demasia com coisas que, para mim, não deveriam ter tanta importância, comer bastante cebola... Fato é que sempre foi uma pessoa com quem gostei muito de estar e, parece-me, sempre houve uma reciprocidade neste sentimento.

Nesses 10 anos vivi muitas experiências, em lugares diferentes, culturas diferentes. Aprendi muito.
Intensificando a convivência com meu amigo hundolandês, resolvi então que agora tentaria minha vida naquele seu país tão peculiar.

Fiz meus contatos, conheci outras pessoas de lá e todas foram tão receptivas e tão queridas comigo. Aprendi o bê-a-bá da língua local, pesquisei na internet, mandei meu currículo, falei um pouco a meu respeito...
Aparentava também terem gostado muito de mim! Consegui a garantia de um bom emprego, um excelente apartamento pra morar num lugar arborizado, clube, paz, felicidade.

Puxa! Que futuro atrativo e promissor!! Que maravilhoso intercâmbio!

Tratei logo de comprar uma passagem para lá. Deixei tudo cautelosamente armado para que nada desse errado. Arrumei minhas malas, dei tchau para os meus, comprei alguns presentinhos para levar e, como não podia faltar, meu carregamento de chimarrão para o kit de sobrevivência à distância!

Eba!! Como sou feliz!!

A viagem foi longa. Dormi bastante no vôo, mas às vezes abria um olho para espiar onde eu estava. Depois fechava novamente com um sorriso no rosto.

"Senhores passageiros, dentro de poucos minutos estaremos aterrissando no aeroporto de Astória. A temperatura é de 23º C e o tempo está bom."

Lá de cima eu já podia ver quão verde era aquele lugar e tinha muitos lagos. Tinha extensas plantações de diferentes sortes que formavam o colorido desenho de uma renda. Era bonito!! Eu estava chegando ali! Meu corpo parecia que ia explodir de tanta alegria! Eu sentia nos dedos a emoção querendo saltar de mim!

Desembarquei no aeroporto. Nada de luxos, mas muito honesto. As pessoas tinham traços muito lindos, caras sérias! Todas falavam muito rápido.

Controle de passaporte ok, as malas tinham chegado intactas. Controle da aduana: "luz vermelha!"
Eis que abri a mala para os fiscais, eles olharam minha erva do chimarrão e imediatamente fui pega por dois policiais sisudos que me conduziram a uma salinha onde seria interrogada por um oficial muito rígido e exigente, porém carismático e sedutor.
As perguntas eram muitas. Nem todas eu conseguia entender, ou por causa do idioma, ou por não ver fundamento na questão. A cada resposta uma reação extremamente exagerada que me deixava com um medo exacerbado e desanimada ou muito feliz, acolhida e esperançosa.
Ao mesmo tempo que me interrogavam, me serviam orgias gastronômicas deliciosas, mostravam músicas lindas tocadas por um oboísta da região, contavam o funcionamento do país e me comunicavam que eu estava sendo muito esperada e era muito bem-vinda.

Se eu era tão bem-vinda por que não me deixavam então sair dali e ir fazer minha vida de uma vez?!

E o tempo foi passando e eu fui ficando naquela salinha de entrada, sem que permitissem que eu realmente entrasse no país. O tempo foi passando e eu vi que a situação estava complicada, mas nunca desisti do sonho de fazer minha vida nova ali, afinal a vida não é feita só de flores. O tempo foi passando e eu me sentia feliz, mesmo assim, com as expectativas. O tempo foi passando e eu fui entendendo o funcionamento do país com a convivência das pessoas que passavam pela salinha. O tempo foi passando e eu fui agredida moralmente várias vezes, mas sempre pensei que fosse apenas uma questão de entendimento e ponderei. O tempo foi passando e eu inventava danças com músicas cantadas por mim. O tempo foi passando e foi diminuíndo os fatores que alimentavam aquele sonho. O tempo foi passando e a força para manter o ânimo foi se esvaíndo...

Estou há quase 11 meses na salinha de entrada e sou taxada de mentirosa e não tenho a confiança deles, apesar de saber que eles me querem lá. Eu mesma já não sei se confio no querer deles, embora ainda tenha a esperança de passar da salinha e conseguir recuperar minhas escassas forças numa cama bem gostosa e confortável que deve existir na cidade e, enfim, recomeçar.

...tudo porque eu trazia na mala meu carregamento de erva de chimarrão...

Passava pela salinha, de vez em quando, uma pessoa que estudou o comportamento e a cultura geral de diferentes países. Talvez ela pudesse me dar uma boa ajuda, mas ela não foi muito acessível para que eu pedisse que tentasse explicar minha situação aos hundolandeses. Talvez ela soubesse explicar que, por eu portar um simples chá, não significa que eu tenha que pertencer à máfia de traficantes e pessoas de más índoles do meu país, apesar de até conhecer muitas delas. Que eles poderiam separar as coisas, parar de tanto medo e me deixar passar.

Mas paciência. A situação está no limite, estou começando a ficar doente. Com MUITO pesar, criei coragem, pedi meu passaporte de volta e estou à caminho da sala de embarque para voltar pro meu país. Os hundolandeses não esboçaram nenhuma espécie de "não vai", além de repetir que gostam muito de mim.

Dói.

Quando penso em tudo que eu poderia viver que me parecia tão bonito, mas que praticamente não tive oportunidade de experimentar... Quando penso em deixar de conviver com aquelas pessoas tão queridas com quem me envolvi muito dentro da salinha...
Quando penso que não houve uma forte tentativa de que a situação fosse esclarecida e que aprendêssemos as nossas diferentes culturas e linguagens...

Dói.

Eles também estarão perdendo com a atitude que tiveram. Vão deixar escapar uma boa pessoa que, com certeza, os quer muito, lhes traria muito e lhes faria bem.

Paciência. Paciência.